o peso de ser leve.

Jess Rangel
4 min readApr 27, 2023

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Edward Hopper, Morning Sun (1952)

Este texto será um desabafo. Um desabafo sobre mansidão que eu não tenho, mas almejo ter todos os dias.

Todos os dias eu vou atrás da leveza. Mas é difícil ser leve. Ser leve e livre dá muito trabalho, muito mais do que pensam. Se livrar do jugo da imposição que eu mesma deposito sobre mim mesma é difícil. Eis aqui um dos desafios impostos pelos tempos em que nós vivemos: a sensação de se nunca chegar lá. De nunca ser o suficiente. Ah, pior ainda: a sensação de nunca ser única, de não produzir algo único e de qualidade. Como concorrer em um mundo em que todos produzem constantemente coisas de valor?

Na tentativa de encontrar um afago, encontro-me indo na contramão do mundo. Tento buscar a leveza na vida lenta, na atenção plena e na intencionalidade das escolhas. Entretanto, por mais bonito que isso seja, é tudo muito frágil e rompe-se facilmente ao eclodir com a agitação da rotina, com o barulho do dia-a-dia. A beleza da vida lenta também tornou-se um conceito em voga: o slow living, que também se insere nos famosos slow eating e slow fashion. Slow. Devagar. Fazer com calma. Este movimento é, de fato, um bálsamo nessa era de urgência em que vivemos, mas não consigo deixar de perceber a graça de que hoje tudo se reduz a um conceito/movimento. É assim que as pessoas encontram seus rótulos, suas explicações, suas diretrizes, talvez. Vivemos na era dos extremos, se um caminho não é bom, vamos diretamente para o outro caminho e excluímos todo o resto.

Até o slow living se torna um padrão inalcançável e aí nos cobramos por não conseguir viver tão plenamente. Nos cobramos por não conseguir dar atenção e leveza ao que deveria ser simplesmente viver a vida. O que deveria ser usado como uma ferramente para irmos na contramão do mundo, acaba se tornando mais uma das frustrações diárias porque viver com leveza, de fato, demanda uma intencionalidade que parece não haver em nós, já que nossas intenções são depositadas nos lugares errados. Afinal, como se comparar ao slow living das redes sociais? Nem todos podem largar tudo e ir viver A Vida dos Bosques que Thoreau tanto buscou. Tudo é para ser visto, para ser entregue, para ser postado e avaliado.

Não adianta: querendo ou não, somos moldados pelo tempo em que nós vivemos.

Sim, esse desabafo começou com um “eu” e dirigiu-se para o “nós”. Há alguém isento dessas questões? Há alguém que não lide com as frustrações de não conseguir atingir o potencial de ser alguém que produza algo de verdade? Eu sei que há alguns sortudos por aí que são verdadeiramente livres. Mas, no geral, há esse sentimento em comum que paira em todos nós.

Às vezes me encontro refletindo sobre a tão famosa frase de Santo Agostinho: “Fizeste-nos, Senhor, para ti, e o nosso coração anda inquieto enquanto não descansar em ti.” Ó, Deus meu, o que será de nós? Como encontramos descanso? Como encontramos leveza? As minhas orações refletem essas questões intensamente. “Deus, livra-me de mim mesma, do peso de ser eu, de não atingir essa leveza que eu tanto almejo.”

Ó, inquietude! Eu digo que quero a vida lenta e plena, mas não consigo lidar bem com o processo que deveras é lento. Lentidão. Pausa. Calma. Tudo que eu quero e não quero, ao mesmo tempo.

Nessas horas, eu me lembro sempre de um trecho da carta de Hélio Pellegrino a Fernando Sabino, que atualmente se encontra do prefácio do livro “O Encontro Marcado”. Saboreiam cada palavra deste trecho:

O homem, quando jovem, é só, apesar de suas múltiplas experiências. Ele pretende, nessa época, conformar a realidade com suas mãos, servindo-se dela, pois acredita que, ganhando o mundo, conseguirá ganhar-se a si próprio. Acontece, entretanto, que nascemos para o encontro com o outro, e não o seu domínio. Encontrá-lo é perdê-lo, é contemplá-lo na sua libérrima existência, é respeitá-lo e amá-lo na sua total e gratuita inutilidade. O começo da sabedoria consiste em perceber que temos e teremos as mãos vazias, na medida em que tenhamos ganho ou pretendamos ganhar o mundo. Neste momento, a solidão nos atravessa como um dardo. É meio-dia em nossa vida, e a face do outro nos contempla como um enigma. Feliz daquele que, ao meio-dia, se percebe em plena treva, pobre e nu. Este é o preço do encontro, do possível encontro com o outro. A construção de tal possibilidade passa a ser, desde então, o trabalho do homem que merece o seu nome.

Retirado do livro: SABINO, Fernando. O encontro marcado. Rio de Janeiro: Record, 1995 (pág. 05).

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Jess Rangel

“Eu me contradigo? Pois muito bem, eu me contradigo. Sou amplo, contenho multidões.” — Walt Whitman